Parámos em frente de um prédio antigo em Alcântara, daqueles com duas portadas em madeira e tocamos à campainha. Não tardou muito que nos abrissem a porta e ao longe já se ouvia musica. Subimos por umas escadas em madeira até ao segundo andar.
O aniversariante aguardava-nos à porta com um sorriso de felicidade, e após as devidas apresentações entrámos em casa. Havia um tumulto de gente que circulava naquele corredor estreito completamente indiferente à nossa chegada e ouvia-se jazz acompanhado de uma voz feminina. Percebi que o aniversariante ter-se-ia mudado havia pouco tempo pelo que nos fez questão de mostrar a casa, essencialmente a cozinha e a casa de banho. Os outros quartos não mostrou, uma vez que nestes havia um corrupio de gente a entrar e a sair.
Entrámos na sala, apinhada de gente. Uns estavam bem sentados em sofás e poltronas, outros sentados no chão em almofadas. Sentia-se perfeitamente bem uma hierarquia de importância naquele cenário. Uma figura de uma mulher magra, morena e extraordinariamente elegante encontrava-se em pé de costas para a porta. Para meu espanto quando esta se vira percebi que a voz feminina que se ouvia era ela e não do CD. Cantava graciosamente por cima de uma orquestração como eu nunca tinha ouvido. Ela virou-se e, interrompendo a sua exibição, disse:
“Olha o Filipe!”- Olá Vanda…
Tempos mais tarde vi esta estranha mulher na televisão com cabelo azul…
Não conversei com ninguém, era um estranho mundo de caras estranhas e ao mesmo tempo conhecidas. As conversas diziam respeito a mexericos de bastidores e eu estava cada vez mais longe do meu mundo. Olhavam-me de soslaio demonstrando uma curiosidade de saber mais sobre mim.
Há alguém que diz
“vamos tirar uma fotografia!”. Pusemo-nos todos juntos, tipo equipa de futebol, o Filipe procurou-me para ficar ao meu lado em baixo, e ficou com a mão por cima do meu ombro. Nunca vi tal fotografia. Pode ser que apareça daqui por 50 anos na fotobiografia de algum celebre…
Cantámos os parabéns e apagaram-se as velas num magnífico bolo de chocolate, que pelo menos três pessoas não quiseram comer
.”Caprichos com dietas!” pensei eu. Ouve-se, então o aniversariante:
- Então gostaram do bolo de “haxe”?!?!?
A principio não percebi, aliás não queria perceber…mas afinal era verdade. Naquela altura, e certamente nos dias de hoje, havia um conjunto de receitas de cozinha em que de entre os ingredientes o haxixe era um deles. Agora percebi porque é aqueles não quiseram comer bolo! Fiquei em pânico! O pensar que podia ficar sem as minhas faculdade intelectuais afastou-me sempre do álcool, dos psico-trópicos e de outras drogas, e agora tinha acabado de comer bolo de haxe!! Fiquei visivelmente perturbado, pelo que tentei disfarçar junto do Filipe.
Refugiei-me na cozinha encostado a um balcão rodeado de sacos de lixo cheio de copos e pratos de plástico. Não sabia o que iria fazer, não sabia se iria ter repercussão no estado de consciência. Eu queria ir para casa o mais rapidamente possível, se já não estava bem, ali muito menos. O Filipe procurou-me e beijou-me, as pessoas entravam indiferentes na cozinha à procura de bebida e ele mantinha-se igualmete indiferente com a sua presença e continuava a beijar-me.
- Não estás à vontade aqui, pois não?
Eu respondi com um encolher de ombros.
- Vamos então, eu levo-te a casa!
Eu queria era chegar a casa antes de me acontecer alguma coisa. Se tivesse que ficar drogado seria na minha cama e ninguém daria por isso…
Pela primeira vez o Filipe iria levar-me a casa. Parou o carro e disse:
- O que fazes amanha? Queres ir dar uma volta?
Assim foi, no dia seguinte foi me buscar a casa às 11 da manha e rumámos ao Cabo Espichel. Parávamos o carro sempre que nos queríamos beijar com mais intensidade e eu não queria acreditar no que estava a viver. Dali fomos ao Meco e depois debaixo de uns pinheiros amámo-nos intensamente – pensava eu… Ele adormeceu e eu fiquei a observá-lo e a fazer planos para o futuro: eu acabaria o meu curso dali por meses, já tinha propostas de emprego e depois alugávamos uma casa e seríamos felizes para sempre…
O Filipe acordou e eu beijei-o.
“Não tens fome?”, perguntei-lhe, sabendo de uma tasca ali perto chamada Mequinhos onde servem uns petiscos óptimos.
Lá fomos. Já não me recordo do que comemos, mas não era isso que importava, era o facto de estar junto dele. Isso sim era o mais importante. Eu deliciava-me a vê-lo comer, deliciava-me a vê-lo sorrir para mim. Eu estava indubitavelmente apaixonado! Não era só a figura nem o físico, mas por uma forma de estar na vida, pela serenidade, não sei…havia um conjunto de coisas nele que me hipnotizavam sem eu mesmo saber quais eram. Estava feliz nesse domingo!
Ás cinco da tarde a noite já fazia sentir a sua chegada, rumámos a Lisboa. A sua cara sofreu uma transformação pelo caminho: não falou nada a não ser que tinha que orientar a vida. Eu pensava:
“Que orientes! Agora estás comigo”. Ao memo tempo pensava que se o meu primeiro amor gay não seria apenas uma ilusão. Certamente não estava muito longe disso, mas era o tipo de pensamento que eu exorcizava logo que ele se aproximava.
Deixou-me à porta de casa dos meus pais e despediu-se com um beijo envergonhado e longe do olhar de quem pela rua circulava, e disse-me:
“Depois telefono-te!...”