domingo, setembro 24, 2006

Amores revisitados...Parte III


Sempre que chegava da faculdade, a primeira pergunta que fazia assim que entrava em casa era se alguém tinha ligado para mim. Este tipo de comportamento levava a que a minha mãe partisse logo do princípio que estava à espera de uma chamada em particular. Este ritual de perguntas durou até sexta-feira quando durante o jantar o telefone tocou. Era o Filipe! Perguntou se eu estava interessado em ir ao cinema nesse mesmo dia à sessão da meia-noite. O filme ainda não sabia qual era, mas respondi imediatamente que sim.
Não consegui esconder o comportamento excitado, que a minha mãe me perguntou se era esse o telefonema que eu estava à espera…obviamente que ficou sem resposta…
Cheguei ao Cais do Sodré cerca das onze horas da noite, lá estava o carro desportivo vermelho à minha espera. Cumprimentámo-nos com um aperto de mão muito masculino e seguimos em direcção ao Quarteto. Fomos ver “A idade da Inocência” com a Michelle Pfeifer e o Jeromy Irons, que tinha estreado na semana anterior. Ainda hoje, quando vejo determinadas cenas me recordo de comentários que trocámos sobre o amor.
A seguir nada aconteceu. Mais uma vez frustrado pelos meus planos não terem correspondido ao imaginado, mas enfim…fui me convencendo que era um namoro à antiga, com muita vergonha e muito amor platónico. Eu devia ter , ainda, a idade da inocência… Continuámos a encontrarmo-nos com mais regularidade para beber café, a seguir aos seus ensaios e falávamos muito sobre sentimentos, enganos, amores passados, coisas serias e menos sérias, mas a minha vontade era sufocar-lhe a respiração com um beijo naquele sorriso que me punha doido.
O ritual de irmos ao cinema e depois cada um para sua casa (eu pelo menos na minha…) foi-se mantendo, durante umas semanas. Como me ausentei da noite os telefonemas iam chovendo por parte de amigos, no sentido de saberem o que se passava comigo. Depressa me aconselharam a não ter muitas esperanças, pois “bom como ele era” devia ser uma grande puta…
A peça estreou, e durante a primeira semana de exibição, muito honrosamente, foi-me oferecido um bilhete para a assistir.
Foi num domingo chuvoso que me dirigi ao Teatro D Maria, e lá fui assistir à peça de teatro da pessoa que protagonizava os meus sonhos e fantasias sexuais.
Desapontado com o seu escasso desempenho, fiquei surpreendido com a personagem, uma vez que o Filipe me falava que era uma pessoa nobre, simpática, afável, e no final de contas era um mordomo cuja intervenção se limitou a meia dúzia de deixas durante toda a peça, sem um papel determinante do desenrolar da intriga. Mas isso era secundário, eu gostava era do actor e não personagem. Pensei que esse tipo de sentimentos que se desenvolvem com as personagens que os actores interpretam era uma coisa blazet dos artistas...
No fim da peça saímos os dois juntos, e reparei que ele tinha um brilho diferente. Olhei com mais atenção, cuja discrição não foi exemplar, e notei que ele ainda não tinha retirado a base da maquilhagem. Como o Filipe reparou no meu olhar atento, de alguma forma ficou embaraçado, e disse que por vezes não retirava a maquilhagem por questões de vaidade…uma faceta que eu até então desconhecia.
Entrámos naquele magnifico carro vermelho e ele disse:
- Vamos ver o mar…
Com aquela chuva toda não me pareceu muito boa ideia, mas ao pé dele tudo faria qualquer sentido.
Dirigimo-nos pela marginal, e conversámos sobre a peça. A determinada altura o Filipe pousa a mão sobre a minha perna e sorri para mim. Se por um lado fiquei em êxtase, por outro não sabia, estupidamente, como corresponder a esse gesto adequadamente, sem perturbar a condução! …o piso estava muito escorregadio...
Parámos numa das praias da linha. O estacionamento estava deserto, ao contrário de outras noites que são verdadeiros locais de engate.
A chuva tinha parado...
- Vamos respirar o cheiro do mar…
Eu saí, obedecendo de imediato àquela ordem celestial.
- Sabes uma coisa? – disse o Filipe - eu já morri aqui…
- O quê?!?!....Não percebo!
- Foi uma personagem minha….que morreu neste mesmo sitio.
Fiquei mais descansado, pois não estava a perceber o sentido das suas palavras.
Eu fiquei a olhar o mar que estava muito revolto e ao longe conseguia ver o Cabo Espichel, cujo luz alumiava as minhas fantasias. O cheiro do mar, por sua vez, confundia-se com o cheiro da terra causado pela chuva.
O Filipe coloca-se à minha frente e deixa-se encostar. Correspondendo àquele movimento, abracei-o por detrás e apertei-o com força. Não consegui esconder a minha inevitável excitação e o Filipe apercebeu-se disso. Virou-se para mim e procurou os meus lábios com a sua boca. Beijámo-nos profundamente contra o carro. Os beijos eram cada vez mais molhados, isto porque a chuva regressou de novo.
Entrámos no carro com alguma rapidez, e os beijos continuaram. Senti o seu cheiro: usava Azzaro. Ainda hoje consigo associar esse cheiro à sua pessoa.
As nossas mãos percorriam os nossos corpos. Ele reclinou o banco e eu coloquei-me por cima, e continuamo-nos a beijar. Estivemos nisto durante uma hora e lá fora chovia torrencialmente. Vim a saber no dia seguinte, pela minha mãe, que tinha havido cheias em Lisboa, nessa noite, e que muita gente tinha ficado desalojada. Eu pensei: “podia ter caído o mundo que eu não tinha dado por isso”…
Os beijos e os jogos de língua mantiveram-se e a determinada altura ele disse:
- Tenho uma festa de anos, de um amigo meu, e fiquei de lá ir…Eu disse-lhe que estava contigo e ele disse para ires também…

7 comentários:

Anónimo disse...

No palco sorriem com lume os secretos e perturbantes caminhos da vida... É assim que o palco da vida recebe cada uma das personagens que passam... o resto é apenas um pano de fundo... O Mar... a chuva... Não sei porque ainda hoje ocupo nos meus pensamentos horas a tentar entender o sentido e a sensação que a água faz correr.... escorrer sobre mim... É realmente mágico o seu movimento, a sua transparência, o seu sabor temperado.... Água como pano de fundo nesse palco onde a pouco e pouco pareces fazer notar o enlace dessa passagem que tanto (ou tão pouco) te marcou :)

Abraço Manuel :)

AEnima disse...

Manuel,

Vim aqui ter por acaso e gostei da forma como escreves. Fui ficando e fui lendo a historia (ao contrario, mas engracada tambem nesse sentido)... Ia fechar o blog, como faco a tantos sem deixar marca quando vi o teu "anuncio" no inicio da pagina. Manuel, ser gay ou nao ser eh algo tao pessoal, nao achas? O teu blog eh sou teu... porque o anuncio? Eu tambem nao ando com uma tabuleta na testa a dizer que sou hetero, nem que sou muculmana, judeu ou indu, teenager ou quarentona, advogada ou pintora, morena natural ou pintada...

Sera que alguem realmente se sentiria chocado por estar a ler um blog pessoal de uma pessoa homossexual?

Quanto a sexualidades no meu grupo de amigos mais proximos ha de tudo: hetero, homo e bi... e tanto frequentamos o fragil quando estamos em lx como o triplex no porto como qualquer outra discoteca "nao-gay". Para mim a discoteca eh um local para se conviver dancando, logo escolho-a pelo tipo de musica que gosto de dancar.
As pessoas valem pelo que sao... e fico muito triste saber que vivo num mundo em que uma pessoa gay sente a necessidade de avisar o resto do mundo de que o eh.

Luís disse...

Bem, isto está a ficar cada vez mais envolvente... Aposto que foi mesmo um momento mágico. Fico feliz por ti :)

E, claro, espero ansiosamente as cenas do próximo capítulo!

Manuel disse...

AEnima:

Antes da mais...Bem-vinda!
Não posso deixar de comentar, e passo a citar "...fico muito triste saber que vivo num mundo em que uma pessoa gay sente a necessidade de avisar o resto do mundo de que o eh."
Acontece que leu apenas a página de abertura do blog, e se tivesso lido alguns posts anteriores iria perceber que na minha vida quotidiana, quer no trabalho quer na vida familiar, não faço apologia, nem subscrevo uma forma de vida e nem tão pouco ostento a minha orientação sexual. Se já houve alturas de vontade de me assumir com amigos que me são próximos essas alturas são acompanhadas de um sentimento de vergonha e o receio da não aceitação, pelo que nunca o fiz.
Este é o meu diário, o local onde faço a minha catarse de sentimentos, onde exponho as minhas fragilidades e no entanto sou um incógnito. E sabe bem fazê-lo...e tenho pena de não o ter feito há mais tempo. (O dinheiro que eu gastei no meu analista...lololololololol)
Naõ sou apologista de prides gay nem outros carnavais do género, nem frequento guetos "temáticos". Não trago comigo nada que me identifique a um estereotipo criado socialmente, nem tão pouco tenho a necessidade de me fazer notar.
Tal como já respondi a outra pessoa, de facto a apresentação está um pouco, não diria bruta, mas sim nua e crua. Por um lado não quero ferir susceptibilidades para quem, casualmente der com a página e se surprenda com a leitura, por outro economiza tempo para quem não está interessado em determinadas temáticas ou histórias de vida "marginais"...
Não foi uma questão de ter de me assumir socialmente como tu o referes...isto é um diário...publico, mas muito secreto...
Não sei se fui muito claro...

Obrigado pela visita e pelo coment.
Aenima, volta SEMPRE!

AEnima disse...

Ola.

Eu percebo-te... so senti que estarias eventualmente numa luta interna... nao sei... ler aquilo, depois de textos tao bem escritos deu-me assim um vislumbre de inseguranca. Mas isso nao interessa para nada, estou a meter-me onde nao sou chamada. Era so um toque de "se feliz por seres".
Eu estou de rastos com a morte de uma amiga da minha idade. Atropelada, na passadeira, ah porta de casa. Certas coisas poe tudo o resto em perspectiva, nao eh?

Manuel disse...

AEnima:

Mais uma vez vou recuperar em algo que escreveste: "estou a meter-me onde nao sou chamada". Não é nada disso!! O fenomeno mais interessanto dos blogs é a diversidade de opiniões que se conseguem reunir decorrente de um determinado aspecto. É muito salutar emitir opiniões sobre o que quer que seja. "É a conversar que a gente se entende", diz a sabedoria popular. O conhecimento do Homem vai senddo construido não só apenas pelo facto de ser um Ser pensante, mas acima de tudo porque interage e comunica. É bom partilhar ideias, pensamentos e conhecimento. É a nossa tentativa de sermos melhores pessoas, é da natureza humana. Da NOSSA natureza.

Lamento a morte da tua amiga...já viste a ironia do destino? Procurou ser cumpridora das regras sociais - passar na passadeira - e foi mortalmente penalizada por isso. Em que mundo vivemos nós?

Um abraço grande.

Pedro Eleutério disse...

Relembrar o nosso passado é uma coisa fantástica. Lembrar todos aqueles momentos que nunca mais viveremos. Que ficaram imortalizados num espaço e num tempo. Fico um pouco nostalgico a pensar no passado. E agora, que estou a 9 horas de avião do meu passado, sinto-o com uma força tremenda.

O passado é uma história que se faz...

Um abraço e boa continuação de escrita. Estarei atento.